quarta-feira, 15 de junho de 2011

Dos treinos num pasto à abertura da Copa, as muitas casas do Timão*



por Felipe Carrilho

“O nosso campo de futebol, sejamos sinceros, não está à altura do Corinthians. É inadiável a construção de um estádio de verdade, do qual possamos nos orgulhar”, já assinalava o editorial da revista oficial do clube em março de 1953. O desejo de erguer um estádio capaz de comportar a imensa torcida corintiana é antigo e está cada vez mais em evidência com o início das obras da arena escolhida para receber a abertura da Copa do Mundo em 2014.

Para muitos, o Corinthians está realizando “o sonho da casa própria”. No entanto, o clube possui, desde 1926, o campo do Parque São Jorge, na zona Leste paulistana, a popular “Fazendinha”, em que disputou clássicos até a década de 1940. Além disso, em 1916, construiu um estádio na Ponte Grande, atual Ponte das Bandeiras, considerado um dos melhores da cidade à época, onde mandou suas partidas por nove anos. Sem falar no “Campo do Lenheiro”, como ficou conhecido o terreno alugado no bairro do Bom Retiro, ainda no ano da fundação do clube, em 1910.



A primeira casa da torcida corintiana não foi exatamente um estádio. Clube de origem modesta, fundado por trabalhadores, o Corinthians treinou entre 1910 e 1915 num antigo pasto onde a Companhia Viação Paulista guardava seus cavalos e burros que puxavam os bondes, ainda sob tração animal naquele tempo. Localizado na rua dos Imigrantes, atual José Paulino, próximo ao parque da Luz, o terreno estava ocupado por um vendedor de lenha quando o Corinthians instalou ali o seu campo. Vem desse fato o nome “Campo do Lenheiro”.



Em 1962, Antônio Pereira, um dos cinco fundadores, concedeu uma entrevista esclarecedora à revista oficial do clube a respeito dos preparativos do primeiro campo: “Éramos apenas dois para um trabalho danado de duro. Eu era pintor de paredes, e João da Silva, trabalhador braçal. Eu ia à frente tosando o mato, e ele amontoando para fazer fogueira e limpar a área. No final, ficou um bom campo, mas não tinha vestiários nem chuveiros. Os jogadores tomavam banho no bebedouro dos animais”, conta.

David José Costa, pesquisador e funcionário do memorial alvinegro, localizado no Parque São Jorge, aponta uma questão reveladora. Um modelo do distintivo alvinegro, ignorado pela história oficial, representaria um testemunho das dificuldades dos primeiros tempos do time. A inicial “C”, de Corinthians, em forma de ferradura, poderia ser uma referência ao tempo em que o seu campo de treinamentos havia sido uma espécie de estábulo.

Inédito na imprensa, o escudo aparece nos mais antigos registros fotográficos do clube. “Talvez esse seja, na verdade, o primeiro distintivo do Corinthians, anterior até mesmo ao tradicional ‘CP’, bordado sobre a camisa sem nenhum contorno. Outra hipótese é a de que os dois escudos tenham sido usados no mesmo período”, analisa Costa. (ver imagens)

Foi treinando no Lenheiro que o Corinthians conseguiu passar do futebol varzeano para o oficial. Em 1913, depois de disputar uma vaga com o Minas Gerais (referência não ao Estado, mas ao encouraçado, que era motivo de orgulho nacional) e o São Paulo Athletic (clube de origem inglesa), vencendo os dois times, o clube conquistou o direito de disputar o campeonato da Liga Paulista de Football – LPF, entidade que geria o futebol oficial da cidade.



Segundo o historiador Plínio Labriola, “para entrar na LPF, o Corinthians teve de abrir mão de algumas coisas. Teve de deixar de ser um clube de bairro para se tornar um clube da cidade”. Autor da tese de mestrado defendida na PUC, “Resistência e rendição – a gênese do Sport Club Corinthians Paulista”, Labriola enxerga uma gradual transformação no perfil do clube ainda nos seus primeiros anos de história: “aproximou-se de alguns figurões da política, como Alcântara Machado, por exemplo”, afirma.

Foi justamente pela influência do intelectual José de Alcântara Machado, que o Corinthians conseguiu arrendar da Prefeitura o terreno onde inaugurou o seu primeiro estádio em março de 1918, em partida contra o então Palestra Itália, que terminou empatada por 3 a 3. Seu filho, o escritor Antônio de Alcântara Machado escreveria, em 1927, o célebre conto “Corinthians (2) vs. Palestra (1)”, um clássico sobre a maior rivalidade do futebol paulista.

O pontapé inicial foi dado pelo próprio padrinho Alcântara Machado. A edição do dia seguinte do jornal Correio Paulistano registrou a partida: “A inauguração da praça de esportes do Corinthians Paulista foi um sucesso. Cerca de 10 mil pessoas ocuparam as dependências, dando ao local um aspecto encantador”, estampava.



O estádio da Ponte Grande localizava-se na rua Itaporanga, ao lado do Campo da Floresta, da Associação Atlética das Palmeiras, um dos mais aristocráticos clubes de São Paulo. O gramado e até as arquibancadas foram construídos por jogadores, torcedores, sócios e membros da diretoria em sistema de mutirão.

Apesar da boa localização do estádio, o crescimento do número de associados e torcedores fez com que a diretoria ambicionasse um terreno maior, onde pudesse instalar outras dependências do clube. Em 1926, sob a presidência de Ernesto Cassano, o Corinthians adquiriu a primeira gleba do terreno onde hoje se localiza a Fazendinha, o estádio Alfredo Schürig – homenagem ao ex-presidente e empresário que ajudou financeiramente o clube em diversas oportunidades.



Para Celso Unzelte, autor de diversos livros sobre a história corintiana e jornalista do Diário do Comércio, “a aquisição do terreno do Parque São Jorge representou um salto poliesportivo para o Corinthians. O clube pôde desenvolver o seu departamento de remo, de basquete. Além disso, ali o Corinthians encontrou a sua alma, com o povo da zona Leste e a proteção de São Jorge”, diz.

Naquela época, o zona Leste era uma espécie de cinturão verde da cidade, com muitas chácaras e fazendas. “A transferência do Corinthians para o Parque São Jorge foi uma decisão visionária. O clube contribuiu para o desenvolvimento do bairro e talvez de toda a região. Além disso, o Corinthians se tornou uma opção de lazer para os moradores da zona Leste”, analisa Unzelte.



A partir da década de 1950, o Corinthians começou a disputar os seus jogos com maior frequência no estádio municipal do Pacaembu. Em seu gramado, a famosa linha de ataque formada por Cláudio, Luizinho, Baltazar, Carbone e Mário marcou grande parte dos 103 gols anotados no Campeonato Paulista de 1951. “O Corinthians viveu momentos épicos no Pacaembu, como a conquista do campeonato de 1951, a do IV Centenário da cidade, em 1954, a quebra do tabu contra o Santos de Pelé, em 1968. Nesse sentido, o Pacaembu também pode ser considerado uma casa corintiana”, argumenta Unzelte.

Atualmente, a previsão é que o novo estádio do Corinthians esteja pronto para sediar a abertura da Copa do Mundo em 2014. Mas para muitos torcedores, como Filipe Martins Gonçalves, pesquisador e apresentador do programa “100 anos de história” da Web Rádio Coringão, veículo oficial do clube, ter um estádio não é uma prioridade alvinegra. “Em qualquer arquibancada do Brasil sempre haverá milhares de torcedores do Timão. Como já dizia a nossa velha guarda, ‘a verdadeira casa do Corinthians é o coração de cada corintiano’”, afirma.


*Reportagem originalmente publicada na edição dos dias 11, 12 e 13 de junho do Diário do Comércio.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A despedida de Ronaldo e o futebol atual*

por Felipe Carrilho

Ronaldo desenvolveu uma frieza, na hora de fechar contratos com clubes e patrocinadores, parecida com a que sempre demonstrou quando estava na cara do gol nos melhores momentos de sua vitoriosa carreira.

Sua trajetória esportiva é extraordinária, mas nada pode ser mais ordinário do que ficar retomando-a agora. Interessa-nos, assim, o Ronaldo para além das quatro linhas, exemplificado, como em poucas vezes, na coletiva que marcou o encerramento de sua vida de boleiro.

Mais do que um grande jogador, Ronaldo é um índice preciso do estado das coisas no futebol mundial, o jogador-empresa cristalizado. Ao encadear, com a voz embargada, lembranças de seus feitos futebolísticos e agradecimentos aos seus patrocinadores no anúncio de sua despedida, o jogador explicitou isso claramente. A emoção estava ali, natural ou provocada, mas a serviço do pragmatismo do empreendedor do futebol (ou embaixador do Corinthians) em que Ronaldo se transformou.

Compreender a figura histórica de Ronaldo passa, necessariamente, por analisar as transformações do esporte nas últimas décadas, com a gradual fusão da paixão do torcedor com o interesse do consumidor, o que no Brasil tem sido chamado de elitização do futebol.

No entanto, haverá aqueles que preferirão se perguntar se a torcida do Corinthians antecipou o fim de uma carreira fenomenal, se há ou não hipotireoidismo, ou coisa que o valha.

*Texto originalmente publicado no blog Escrevinhador.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

ANT: uma voz contra a elitização do futebol*

Felipe Carrilho

“A religião é o ópio do povo” é uma das mais conhecidas frases de Karl Marx. Apesar da minha confessa admiração pela obra do pensador alemão, nunca consegui esconder certa ressalva em relação à sentença.

Dita isoladamente, a máxima estabelece uma regra geral para o papel social dos narcóticos e das crenças metafísicas (dito alienante), sem considerar os usos, as especificidades dos mais variados sistemas de representação mítica do universo, nem avaliá-los em perspectiva histórica.

Mas o pior acontece quando algum sabichão – geralmente metido a intelectual e esnobe – resolve adaptar a frase ao mundo da bola. “O futebol é o ópio do povo”, brada com ar de originalidade, e prossegue em sua perspicaz análise: “o Brasil não vai para frente porque o povo gosta mesmo é de pão e circo”.

Nem parece que estamos falando do esporte que um político conservador estadunidense, Jack Kemp, há alguns anos tratou de atacar de modo sintomático: “que se faça uma distinção entre o futebol norte-americano, democrático e capitalista, e o outro, europeu e socialista”. Sim, nos EUA o futebol é visto como uma atividade “suspeita”, de gente “esquerdista”.

E, como não bastassem os exemplos de resistência futebolística histórica do povo brasileiro, como da inclusão social do negro pelo exemplo de figuras emblemáticas – que vão de Friedenreich a Pelé, passando pelo goleiro Barbosa -, ou de afirmação da nossa cultura popular, com a conquista de cinco Copas do Mundo, surge agora mais um testemunho do potencial de mobilização do futebol: a ANT – Associação Nacional dos Torcedores.

Fundada há apenas um mês, dia 10 outubro, no Rio de Janeiro, a ANT é uma organização sem fins lucrativos que congrega torcedores de todos os clubes do Brasil. O objetivo geral é lutar contra a elitização do futebol brasileiro, cristalizada pela eminência da realização da Copa do Mundo de 2014 no país.

Sim, o futebol é a nossa cachaça, sem a qual ninguém segura o rojão das injustiças sociais. Abaixo, alguns tópicos, que podem ser encontrados no site da associação, e que dão conta do adversário a ser batido.

“1- A exclusão do povo brasileiro dos estádios de futebol, fruto de uma política deliberada de diminuição da capacidade dos estádios, extinção de setores populares e aumento abusivo dos ingressos.

2- O desrespeito à cultura torcedora, com a extinção de áreas populares, como a geral, onde há uma tradição própria de participação no espetáculo, que inclui assistir ao jogo de pé (o que acontece na Alemanha).

3- A falta de transparência no futebol brasileiro, há décadas nas mãos de dirigentes incompetentes e corruptos; exigimos a democratização das decisões acerca do futebol brasileiro, com a participação dos torcedores; por exemplo: as sucessivas e milionárias reformas do Maracanã, feitas sem nenhuma consulta aos torcedores.

4- A exploração politiqueira do futebol visando eleger candidatos que se aproveitam da sua popularidade para conseguir mandatos contra o povo.

5- O controle das tabelas e horários dos campeonatos na mão da rede de televisão que há décadas detém o lucrativo monopólio das transmissões televisivas de jogos de futebol; horário máximo de 20h para o início das partidas durante a semana e 17h aos domingos.

6- A retirada de comunidades de trabalhadores em nome da Copa do Mundo e das Olimpíadas.

7- A falta de meios de transporte dignos durante os dias de jogos; exigimos esquemas especiais em dias de jogos”.

Veja também esse vídeo informativo:

http://www.youtube.com/watch?v=XUsYObVtc5I

*Texto publicado originalmente no site Escrevinhador.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Unificação dos títulos: CBF é anacrônica*

por Felipe Carrilho

A decisão da CBF de unificar os títulos nacionais, considerando os disputados no período entre 1959 e 1970 é, sem dúvida, anacrônica. E não estamos empregando aqui o termo com o seu sentido cotidiano, como sinônimo de retrocesso ou de atraso. Anacronismo é, resumidamente, o movimento de transportar valores, ideias ou instituições do presente para tempos passados.

É justamente o que fez a CBF ao equiparar os títulos da Taça Brasil e do Torneio Roberto Gomes Pedrosa com os do Campeonato Brasileiro, organizado a partir de 1971. Ora, dizer que o Palmeiras e o Santos conquistaram oito títulos brasileiros é o mesmo que proclamar, oficialmente, Dom Pedro o primeiro presidente da República do Brasil.

Uma coisa é discutir a história do futebol no País, valorizando os torneios do passado em correspondência com o período histórico em que foram disputados, outra é inventar um discurso histórico oficialesco com uma canetada. A memória futebolística brasileira não precisava disso.

Ademais, se fôssemos aprofundar o argumento anacrônico da entidade que rege o futebol nacional, teríamos de colocar na pauta do dia a oficialização dos vencedores do antigo Torneio Rio-São Paulo como campeões brasileiros, o que seria um absurdo ainda maior, claro, embora absolutamente coerente com a medida adotada.

Esta coluna tem procurado enfatizar as profundas relações entre futebol, sociedade, cultura e política. Mas nesse caso parece que estamos a tratar de mera politicagem. Os grandes clubes do Brasil não precisam de artifícios como esse para ver as suas glórias reconhecidas. Muito menos Pelé, depois de tantas vitórias esportivas legítimas e de todas as homenagens aos seus 70 anos de vida, precisava estampar o peito com 8 medalhas postiças, que nada mais fazem do que arranhar a sua imagem fora das quatro linhas.

*Texto publicado originalmente no site Escrevinhador.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O Brasil traçado pela trajetória da bola*



*Entrevista publicada pelo jornal Brasil de Fato, edição de 9 a 15 de setembro de 2010.

Renato Godoy de Toledo
da Redação

Em “Futebol uma janela para o Brasil” o historiador Felipe Dias Carrilho relata, de maneira metafórica e metalínguística, a trajetória do futebol brasileiro. Tal qual uma partida de futebol, o livro inicia com a preleção e termina com o apito final.
De maneira didática, a obra contempla desde aficionados pelo esporte até leigos. Para o autor, o futebol é um “janela privilegiada” para observar os acontecimentos sociais e políticos do Brasil.
O historiador já colaborou com o jornal Brasil de Fato e atualmente é um dos apresentadores do programa “100 anos de história”, transmitido aos sábados pela Web Rádio Coringão.
Confira abaixo entrevista com o autor.

Em seu livro, você afirma que o futebol foi negligenciado pela classe acadêmica por muitos anos. Como você explica esse desprezo?

Acho que há dois níveis para se abordar esse problema. Por um lado, isso se deve às próprias limitações metodológicas e de abordagem das Ciências Humanas em geral. Durante muito tempo, a História, por exemplo, foi concebida como uma narrativa dos principais fatos da política de uma nação. O que interessavam eram os atos, as medidas tomadas por governantes, fossem eles reis, papas ou presidentes... Temas, como a cultura popular, ou os esportes, eram considerados menores, ou simplesmente ignorados. Isso começou a mudar na Europa a partir dos anos 1930, com a eclosão da Escola dos Annales, na França, que abriu o leque de possibilidades temáticas para a historiografia. Mas esse movimento demorou a se disseminar mesmo na Europa. Só atingiu a produção acadêmica brasileira décadas depois. Ainda hoje o futebol é um tema marginal para boa parte da nossa intelectualidade.
Por outro lado, existe uma questão intrínseca à concepção histórica do futebol. Historicamente, o futebol foi uma espécie de normatização das práticas populares de lazer, conduzida pelas elites que lideraram o processo de industrialização na Inglaterra do século XIX. Até esse ponto, se não era explorado cientificamente pela intelectualidade, ao menos tinha o seu respaldo enquanto elemento constitutivo de virtudes como a disciplina, a lealdade ou a higiene corporal. No entanto, à medida que foi se tornando popular, com a inclusão de negros e operários entre seus praticantes, o futebol passou a ser duramente criticado pelos nossos intelectuais. Rui Barbosa, por exemplo, chamou os jogadores da seleção brasileira de 1916 de “corja de malandros e vagabundos”. Até intelectuais de esquerda, como Graciliano Ramos e Lima Barreto não perceberam o potencial de mobilização do futebol, classificando-o como estrangeirismo barato.

Há momentos na história brasileira em que o futebol serve como "ensaio geral" para os acontecimentos sociais e políticos?

Nunca havia pensado nessa metáfora leninista, mas acho que pode ilustrar muito bem o futebol em alguns casos. Se pensarmos que a Democracia Corinthiana, de certo modo, antecipou o movimento das Diretas Já, é válida. Não sei, apenas, se podemos dizer que isso serve como uma teoria ou uma regra geral do futebol. O que talvez possamos afirmar é que existe algo que está na estrutura do jogo e que é rebelde na essência. Não é à toa que o futebol é muito mal visto, ainda hoje, pelos EUA. Não foram poucas as vezes em que jornalistas estadunidenses se referiram ao que eles chamam de “soccer” como um esporte de gente “esquerdista” e “pouco confiável”. Recentemente, um apresentador de televisão “parabenizou” a nação por “fazer parte, oficialmente, do terceiro mundo”, no momento em que a seleção dos EUA havia se classificado para as oitavas-de-final da Copa da África do Sul.
Não podemos desconsiderar outras questões, mas a própria lógica interna do futebol representa um desconforto à utopia neoliberal. O futebol é, por excelência, o lugar privilegiado do acaso e da incerteza, o único esporte em que o mais fraco tem sempre boas chances de derrotar o mais forte. Além disso, o futebol não pode ser quantificado... Aliás, o resultado do jogo não pode ser definido pela somatória de determinadas ações, muito diferente do que acontece no futebol americano ou no basquete.

Em "Futebol uma Janela para o Brasil" você cita o intelectual brasileiro José Miguel Wisnik que salienta que uma Copa do Mundo diz muito sobre o momento que vive o país. Na sua opinião, o que pode se inferir a partir da participação brasileira no Mundial da África do Sul?

Em geral, o historiador teme comentar fatos tão recentes, em nome de certa distância temporal crítica. Acho que, no mínimo, é possível perceber, por essa Copa, o crescimento das religiões evangélicas no Brasil (risos). Havia um número imenso de jogadores evangélicos no time, como Kaká, Elano, Felipe Melo... Mas, falando sério, acho que essa Copa mostrou claramente que não superamos, ainda, a moral disciplinadora dos tempos do amadorismo. Penso que a lógica do favor, tão presente nas problematizações sociológicas sobre o Brasil, ficou evidenciada na convocação do Dunga, que não abriu mão de nenhum de seus “homens de confiança”.

O futebol é um esporte que nasce na elite, mas depois passa a aceitar os negros e operários. Porque esse processo não foi acompanhado pela sociedade em geral?

Aí eu gostaria de esboçar uma teoria do futebol, ao menos do brasileiro. Parece-me que historicamente esse esporte funcionou como uma espécie de sublimação dos conflitos sociais do Brasil, no sentido freudiano do termo mesmo. Veja que é uma ideia muito diferente da concepção preconceituosa da “válvula de escape”, que procura enfatizar um aspecto dito “alienante” do futebol. Acho que o futebol foi um importante meio de resistência e luta dos negros brasileiros. A própria ideia de “democracia racial”, do Gilberto Freyre - que foi muito criticada por causa da persistência do racismo no país -, tem a sua melhor realização no futebol brasileiro, mais especificamente na seleção brasileira.
Não que eu esteja dizendo que não há racismo no futebol, pelo contrário. Mas acho que é no futebol, e talvez na nossa música popular, que a utopia de uma sociedade multirracial e harmônica se realiza da maneira mais promissora. E, nesse sentido, o futebol não é mero entretenimento, mas um horizonte aberto para o futuro do país.

No livro, a atuação da seleção brasileira tricampeã em 1970 é retratada quase como uma "afronta" ao que você denominou "pátria em coturnos". Na sua opinião, a prática do que convencionou-se chamar futebol arte rivalizou com a estrutura militarizada daquela delegação? Em outros termos, dá para dizer que o preterido João Saldanha já havia "contaminado" aquela equipe?

Não acho que tenha sido a figura progressista de João Saldanha o fator determinante para essa aparente contradição. Na verdade, prefiro pensar que o futebol-arte é um prodígio da nossa cultura popular, que é um fenômeno muito mais profundo do que qualquer situação política, sempre passageira por definição. Fernand Braudel dizia que a História é como o oceano, em que os fatos são representados pelas pequenas ondas e oscilações da superfície. O verdadeiro movimento da História estaria nas correntezas mais profundas do mar, nas estruturas, como a sociedade, a cultura... A cultura de um povo é um fenômeno de longa duração, como costumam dizer os historiadores. O futebol mágico apresentado pelo time de 1970 é, talvez, a expressão futebolística máxima da originalidade da formação cultural brasileira, assim como um grande disco do João Gilberto, para forçar a comparação com a música.

Ao comentar o fracasso da seleção brasileira em 2006, você cita que aquele escrete já está forjado no modelo neoliberal globalizante, já que os principais craques atuavam na Europa com salário exorbitantes. Você acredita que o individualismo (a busca de marcas individuais, como maior número de gols, maior número de partidas com a seleção etc), exacerbado pelo neoliberalismo, possa ter contribuído para aquela derrota?

O fato, em si, de a seleção ter sido derrotada não diz nada. O problema foi o time não ter correspondido a todas as expectativas e ao seu próprio potencial, não jogando bem. A cobertura midiática excessiva gerou um efeito ilusório sobre os jogadores e sobre todo o país. Sabemos que a fetichização das mercadorias é um elemento marcante do ideário neoliberal. Nesse caso, houve uma fetichização dos jogadores. O que não foi uma novidade, pois isso é uma tendência mundial há algumas décadas. É que o fracasso de 2006 foi o melhor retrato desse fenômeno.

Se o futebol nasce das elites e é praticamente dominado pelas classes mais pobres, parece haver agora um movimento inverso com uma elitização. Você aponta a realização da Copa de 2014 no Brasil como um trampolim para essa exclusão do povo dos estádios. Explique essa sua opinião.

Na verdade, a realização da Copa de 2014 no Brasil não é o motivo desse processo que está sendo chamado de elitização do futebol. A Copa é apenas o evento privilegiado para se olhar para esse processo, pois nesse momento as condições irão se acirrar, o preço dos ingressos, por exemplo, aumentará como nunca. Temos agora o Estatuto do Torcedor, que, de fato, impõe uma série de restrições a quem frequenta os estádios. No entanto, a elitização é um projeto muito velho, que está apenas se cristalizando agora. Ela é, no Brasil, fruto da profissionalização do futebol, que começou na década de 1930. Se, por um lado, a regulamentação trabalhista do jogador de futebol permitiu que setores marginalizados da nossa sociedade pudessem ser remunerados enquanto profissionais do esporte, por outro lado, isso reproduziu as condições gerias e precárias do trabalho no Brasil. Ou seja, uma pequena elite muito bem remunerada de trabalhadores parece ofuscar os rendimentos modestos da maioria. Sem falar no desemprego... No futebol isso é gritante, com as transações milionárias envolvendo nossos jogadores rumo ao futebol exterior. Não se trata, portanto, de voltar às várzeas... Para se democratizar o futebol, de fato, é preciso superar o modelo atual por meio de um projeto que leve em conta não apenas o esporte, mas a política e toda a sociedade.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Lançamento do livro Futebol: uma janela para o Brasil

Dia: 10/08
Hora: 20h
Local: Museu do Futebol (Estádio do Pacaembu)



sexta-feira, 30 de julho de 2010

Futebol: uma janela para o Brasil



Esta é a capa do livro que vou lançar. Em breve, teremos a data do lançamento.